Existem heróis e heróis. Se existe algo que me irrita profundamente é o jeito sem cerimônias com que o mestre-de-cerimônia do Big Brother Brasil saúda aquela penca de jovens – mais um ou dois da terceira idade – confinados na casa montada pela TV Globo no Rio de Janeiro: "Boa noite, meus heróis!" De tanto usada, a frase virou bordão do BBB. Seu autor? O jornalista e dublê de guru do programa, Pedro Bial.
Ora, o que há de heroísmo em um programa que, longe de agregar conhecimento, é um poço de futilidades onde quanto mais se escava mais há para se escavar? 15 ou 16 pessoas vendendo sua intimidade, seus pensamentos e corpos, hábitos e sotaques, expondo-se ao ridículo em centenas de situações, muitas destas de gosto profundamente duvidoso, tudo em troca de prêmios avulsos ou do prêmio maior de R$ 1.000.000.00. Repito, o que há de heroísmo nisso? A ver os números do Ibope, o programa é quase uma coqueluche nacional. Revistas, jornais e sites dedicam ampla cobertura ao que ocorre dentro da casa. Cria-se um frenesi, arma-se uma curiosidade em larga escala, como se os destinos do povo brasileiro dependessem deste ou daquele que irá continuar ou sair da casa.
Os inimigos no poder midiático
Durante alguns anos, participei, em Brasília, de um colegiado que tratava da qualidade dos programas da televisão aberta. O nome já dizia tudo: "Campanha contra a Baixaria na TV". O slogan era ainda mais claro: "Quem financia a baixaria é contra a cidadania." Desde aquela época, tinha por dever de ofício que ver e depois rascunhas duas laudas com comentários sobre dois programas de TV em horário nobre – no caso, a novela das 8 e o Big Brother Brasil, ambos na grade de programação regular da Rede Globo. Desde o ano passado, não tenho tido mais tempo para participar dessa atividade, mas, de qualquer forma, vez por outra me pego anotando situações, frases, contextos, cenas tanto de um quanto de outro desses programas.
Hoje, comecei este texto pensando: o que mais me incomoda no BBB, já em sua nona edição consecutiva neste 2009? Foi quando as luzes se acenderam e pude ouvir no subtexto do pensamento a entusiástica saudação: "Boa noite, meus heróis!" E me incomoda porque sei muito bem que os confinados no esquema global podem ser qualquer outra coisa menos heróis. Pode-se até elastificar o vocábulo, o termo, mas é forçar muito a mão (e a paciência) querer que essas criaturas quase acéfalas, em um festival de gestos sensuais, sejam apresentadas ao Brasil em horários nobre, sete vezes por semana, como "nossos" heróis!
E só há um jeito para se contrapor a isso. Só existe uma maneira de separar o joio do trigo. É comparando o grupo do BBB com minha galeria, não muito extensa, dos heróis que vêm marcando minha vida. E meus heróis, ao contrário de Cazuza, não morreram todos de overdose, mas, com alguma certeza, meus inimigos estão no poder. No poder midiático, pelo menos. Meus heróis têm nome, sobrenome e deram um sentido às suas vidas e, por extensão, deram um alento à minha e a outras gerações. Penso em alguns.
Um terço da vida na prisão
Começo com o russo Alexander Soljenitsin. Vencedor do Prêmio Nobel de Literatura de 1970 e conhecido por suas ferozes críticas ao regime soviético – em especial às prisões e aos campos de trabalhos forçados em que eram confinados os dissidentes, denunciados em sua célebre obra Arquipélago Gulag. Este foi um herói. Todos se referem ao divisor de águas que foi a derrubada do muro de Berlim em 1989. Mas não esqueçamos que as primeiras pedras começaram a cair quando o Ocidente passou a conhecer o pensamento sem fronteiras do autor de Um dia na vida de Ivan Denisovich.
E que dizer daquela mulher franzina, raquítica, enrugadinha e muito encurvada, lembrando o deus Atlas a carregar sobre os frágeis ombros o peso do mundo? Sim, refiro-me a Madre Teresa de Calcutá, grande heroína do século 20, como, aliás, ficou bem afirmado durante a solenidade da sua beatificação. Madre Teresa deu a sua vida pelos mais pobres dos pobres. Escolheu como indumentária o sari das mulheres paupérrimas da Índia. No seu dia-a-dia, partilhava a vida com os doentes em fase terminal. Nunca perguntou se as doenças eram contagiosas ou não. Nunca lhe vimos uma luva nem uma máscara.
Penso no sul-africano Nelson Mandela, que passou 30 anos – mais que um terço de sua vida – preso nos calabouços das prisões sul-africanas por se opor ao regime do apartheid. Mandela sabia estar diante de uma das mais terríveis iniqüidades que um ser humano poderia cometer contra um seu semelhante: a superioridade afirmada de forma violenta com base na cor da pele. Quem, senão a coragem, pode acalentar um homem preso durante três décadas? Kofi Annan, sobre ele escreveu: "Se estivermos à altura de uma pequena parte do que Mandela é, o mundo será um lugar melhor."
Uma fisgada de emoção
Outro que não me sai da cabeça é o brasileiro Sérgio Vieira de Mello. Um herói em toda a extensão do termo. Morreu a serviço da paz, naquele que foi o primeiro atentado terrorista na história do mundo contra um representante da ONU em terreno de guerra e em missão de paz. Em setembro de 2003, poucos dias após sua morte em Bagdá, tive a emoção de presidir a solenidade de entrega do Prêmio Cidadania Mundial, post-mortem, à sua mãe, dona Gilda Vieira de Mello. O brasileiro foi homenageado com um busto instalado em frente ao escritório do Alto Comissariado para Direitos Humanos em Genebra, Suíça, como reconhecimento a todos os que perderam a vida no Iraque e aos mais de 30 anos de trabalho que Sérgio Vieira de Melo prestou às Nações Unidas. Com certeza, o brasileiro foi o herói que incorporou como poucos valores sociais como a paz, e é a representação máxima do herói contemporâneo.
Reconheço, meio a contragosto, que todos os heróis são espelhos do mundo e da sociedade em que vivem. Os heróis do Bial espelham o mundo da futilidade, o hedonismo, o império dos sentidos humanos, a interação quase total entre os espaços público e privado. Meus heróis espelham o mundo dos ideais, dos valores humanos, do desprendimento e do amor à espécie humana. Os heróis de Bial lutam pelo prêmio financeiro e pelas conseqüências advindas de contratos pecuniários no mundo artístico. Meus heróis lutaram por aquilo em que acreditavam e sua recompensa era tão somente o sentimento de possuírem consciências tranqüilas, tanto que o mito do herói não foi por eles desfrutado: morreram em si para darem vida ao herói que neles subsistia.
A diferença maior entre uns e outros é que os heróis de Bial trazem consigo a fraca luminosidade dos vagalumes em sua existências efêmeras. Já os meus heróis trazem consigo sóis e luas. Finalmente, posso afirmar com total certeza: dos meus heróis, sinto uma fisgada de emoção quando deles meu pensamento se ocupa. Já dos outros… quem pode dizer algo?