Por José Carlos Ruy
Um estudioso que, no futuro, fizer a avaliação política do governo do presidente Lula, vai se defrontar com duas realidades distintas. Uma, à superfície, é a que estará reproduzida nas manchetes principais dos jornalões, que se referem às escandalosas acusações contra o presidente e seu governo durante os oito anos de seu mandato.
Contudo, se o pesquisador tiver realmente interessado em ir a fundo e procurar informações em arquivos policiais ou judiciários verá que as manchetes, levianas, na imensa maioria dos casos foram desmentidas pela investigação, pois eram, na verdade, armas da luta política da direita contra um governo que iniciou um processo de mudanças para aprofundar a democracia no Brasil e, para usar uma palavra em moda, republicanizar o Estado, o governo e os órgãos públicos. Isto é, colocá-los a serviço dos brasileiros, e não apenas de um pequeno grupo de privilegiados das classes altas da sociedade, como ocorreu no país na quase totalidade de sua história.
Nesse sentido, aquele pesquisador poderá descobrir que o governo do presidente Lula reconstruiu o Estado depois de mais de uma década de governos tucanos que fragilizaram as instituições públicas e os órgãos de ação governamental, seja na economia, na formulação de políticas públicas, nas relações exteriores, na garantia da soberania nacional. O exemplo sensível, neste particular, é o contraste entre os dois governos em relação às Forças Armadas brasileiras. Enquanto o governo de Fernando Henrique Cardoso sucateou as Forças Armadas e quase rendeu-se às pressões norte-americanas para reduzí-las a um mínimo meramente simbólico, o governo Lula reaparelhou nossa força militar e deu-lhe condições mais favoráveis para cumprir sua missão constitucional de defender a nação. Isso sem levar em conta a recuperação do papel do Estado para induzir o crescimento econômico, que foi abolido sob FHC e recuperado sob Lula, como se viu na capacidade brasileira de defender-se perante a grave crise econômica (a mais grave em 80 anos) desencadeada nos EUA em 2008.
Reaparelhou também a Polícia Federal (também sucateada durante os anos FHC), que pode cumprir sua função e agir contra ilícitos cometidos principalmente por gente que, até então, era vista como acima do bem e do mal e estava isenta de qualquer investigação por este organismo. Quem não se lembra do “engavetador geral da República” de FHC, o Procurador Geral Geraldo Brindeiro, cujas gavetas foram verdadeiros sepulcros para acusações graves contra altos figurões das altas esferas.
Nos oito anos do governo de FHC, a Polícia Federal realizou apenas 28 operações. Sob Lula, até o começo de 2010, foram 1.033 operações – quase quarenta vezes mais! Elas prenderam 13.232 pessoas, 14.964 servidores públicos, entre eles 94 policiais federais. Foi uma novidade notável para os padrões costumeiros da realidade política brasileira: a Polícia Federal agiu contra juízes, policiais, auditores fiscais, agentes do Ministério Público Federal, prefeitos, governadores, parlamentares de todos os níveis, banqueiros, empresários – gente que até então estava pouco acostumada a prestar contas de crimes que cometeram à sociedade brasileira.
Essa nova realidade, que faz parte de um outro aspecto de significado mais profundo das mudanças iniciadas no governo Lula e que afetam vivamente a nova realidade política do país, poderá chamar a atenção daquele pesquisador.
Este aspecto não se limita à luta contra o crime e à ação contra membros das classes dominantes. Uma inovação, de natureza política e profundas consequências democráticas, foi constituída pelas conferências nacionais realizadas durante estes oito anos de mudanças.
Neste período, a concepção de democracia avançou no sentido de romper com a formalidade do voto, à qual os conservadores sempre se esforçaram para reduzir a participação popular. Além de se certificar da garantia do processo democrático e eleitoral em sua integridade, aquele pesquisador poderá também se surpreender com a intensidade da participação popular nas inúmeras conferências nacionais realizadas desde 2003. Elas já haviam ocorrido antes, mas se tornaram uma espécie de marca registrada da participação política do povo no último período. Um balanço divulgado no começo de 2010 mostra que foram realizadas 72 conferências durante os dois mandatos de Lula.
As conferências nacionais ocorrem desde 1941; no total são 109. Nos primeiros 62 anos, de 1941 a 2003, foram realizadas 37 e a média não chegou a uma a cada dois anos. Desde 2003 foram 72, com média anual de nove conferências. Essas, realizadas no atual governo, tiveram uma participação superior a 4,5 milhões de delegados. Quando for feita uma avaliação em profundidade das consequências de um movimento de tamanha envergadura, talvez se descubra que ele teve um papel acentuado no aprofundamento da democracia brasileira. Afinal, cada um daqueles delegados representava, na média, 42 cidadãos brasileiros e sua participação (que nunca foi aleatória, mas organizada) tem previsíveis repercussões na consolidação de uma liderança popular, múltipla e democrática, como nunca houve na história deste país. Pode estar aí, inclusive, a raiz da superação do papel dos chamados “formadores de opinião” tão lamentada pela mídia e pelos conservadores.
Outra consequência desse “conferencismo” (como disse, criticando estes encontros democráticos, o candidato da oposição à presidência da República, o tucano José Serra) pode ser constatada no volume de leis geradas a partir daqueles encontros. Nem tudo foi possível – a Conferência Nacional de Comunicação, por exemplo, enfrentou forte oposição conservadora; o Estatuto da Igualdade Racial só foi aprovado depois de mutilado, não se conseguiu ainda transformar em lei muitas decisões das conferências de saúde, e assim por diante.
Mesmo com essas limitações não é possível rebaixar a importância das conferências. Com elas, disse a professora Thamy Pogrebinschi, do Instituto Universitário de Pesquisa do Rio de janeiro (IUPERJ), autora de um estudo sobre as conferências, “está em jogo uma alteração no modelo de democracia liberal” e isso coloca o Brasil na vanguarda mundial em termos de “práticas participativas de escala nacional”. A realização das conferências, disse ela, “pode fortalecer os mecanismos de representação”.
Nesse sentido, ela deu números à influência legislativa das conferências, contabilizando, até outubro de 2009, a tramitação no Congresso Nacional de 3.750 projetos de lei derivados delas.
A direita tem alergia a uma democracia com esse perfil, que vai além da manifestação do eleitor nas urnas e traz o cidadão para um protagonismo ativo e organizado, capaz de influir no governo e no parlamento. Esta talvez seja a principal marca democratizante do governo Lula que aquele pesquisador do futuro poderá registrar em sua avaliação deste passado promissor.”
FONTE: escrito por José Carlos Ruy e publicado no portal “Vermelho”
Lido no Blog Democracia e Política
Nenhum comentário:
Postar um comentário