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Como não poderia deixar de ser, o passado da candidata Dilma Rousseff tem atraído especial atenção da mídia. Sua participação em organizações clandestinas de resistência à ditadura, particularmente a Vanguarda Armada Revolucionária Palmares (VAR-Palmares), poderia ser um incentivo para uma reavaliação da história recente do Brasil. Mas essa oportunidade está sendo, mais uma vez, perdida, com o aval da própria candidata, que se recusa a dar declarações sobre o tema.
O Supremo Tribunal Militar esconde fontes inestimáveis para essa reavaliação, dentre elas os originais dos processos nos quais Dilma Rousseff é acusada. Infelizmente, o acesso a eles é extremamente difícil, limitado ou simplesmente proibido pelas autoridades. Por sorte, cópias desses processos integram a coleção Brasil Nunca Mais, seu conteúdo é público e pode ser consultado por pesquisadores e interessados no Arquivo Edgard Leuenroth – Centro de Pesquisa e Documentação Social, sediado no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas.
A coleção integra o acervo do Arquivo desde 1984, quando foi doada por Dom Paulo Evaristo Arns, um dos artífices do projeto Brasil Nunca Mais. A pesquisa desses documentos pode esclarecer episódios importantes de nossa história recente, mas pouca coisa acrescentará ao que já se sabe sobre a participação de Dilma Rousseff na resistência à ditadura. Os processos relatam que ela foi presa no dia 16 de janeiro de 1970 na rua Augusta, em São Paulo, em plena luz do dia. Os autos não registram que portasse arma ou tivesse oferecido resistência. Investigações realizadas na casa onde morava também não encontraram armas, somente alguns folhetos e um livreto de Stalin intitulado Estratégia e Tática. Apenas má literatura política.
No inquérito policial de 30 de janeiro de 1970, Dilma Vana Rousseff Linhares era chamada de “Joana D’Arc da subversão”, uma “figura feminina de expressão tristemente notável”. Segundo seus acusadores, Dilma “chefiou greves, assessorou assaltos a bancos”, mas não é dito que greves ou que bancos. Ao contrário, a inquisição continuou de modo vago afirmando: “Não há (como) especificar sua ação, pois tudo o que foi feito no setor teve sua atuação direta”.
Para a infelicidade de alguns, entretanto, não há nada nesses processos que vincule diretamente Dilma Rousseff a ações armadas, como sequestros, expropriações ou atentados contra alvos civis e militares, nem mesmo a greves ou manifestações estudantis. Ao contrário. Mesmo seus inquisidores não conseguiram estabelecer esse vínculo, não restando – senão — acusá-la vagamente de “subversão”.
Após sua prisão, Dilma foi levada para a sede da Operação Bandeirantes (Oban), em São Paulo. No dia 26 de fevereiro foi lavrado o Auto de Qualificação e Interrogatório, no qual consta um longo depoimento assinado pela presa. Nesse depoimento, Dilma afirmou ter chefiado o Setor de Operações da VAR-Palmares e, posteriormente, os setores Operário e Estudantil. Citou, também, uma grande quantidade de militantes, fornecendo detalhes sobre a participação destes em reuniões ou ações da organização. Seu nome, com frequência, aparece associado nesse e em outros depoimentos de militantes à administração do dinheiro proveniente do famoso assalto ao cofre que o ex-governador Adhemar de Barros possuía na casa de sua amante Anna Capriglioni.
Mas a veracidade desse relato precisa mesmo assim ser contestada. Em uma apelação judicial, a atual candidata à Presidência desmentiu o depoimento prestado, afirmando que ele teria sido obtido “mediante coação física, moral e psicológica”. Em outro Auto de Qualificação e Interrogatório, a acusada repete que “foi torturada física, psíquica e moralmente; que isto se deu durante vinte e dois dias após o dia 16 de janeiro (quando foi presa)”. Por fim, em novo interrogatório, realizado em 21 de outubro de 1970, Dilma Rousseff afirmou não reconhecer nenhuma das testemunhas de acusação, com a exceção de Maurício Lopes Lima, um dos torturadores.
Apesar da evidente farsa judicial, o nexo entre Dilma Rousseff e as ações armadas da VAR-Palmares não foi estabelecido sequer por seus acusadores. Sua militância política era, entretanto, muito mais intensa do que ela afirmou em seus depoimentos, com o propósito de dificultar a acusação a ela e a seus companheiros. O cruzamento das informações contidas nesses processos com outras fontes dá a entender que Dilma, ao contrário do que afirmou no depoimento de outubro de 1970, havia sido ativa na organização chamada Comando de Libertação Nacional (Colina). Mas também nessa organização, ao que parece, não desempenhou ações armadas.
Ao final do processo no Tribunal Militar, Dilma Rousseff foi condenada a quatro anos de prisão e a dez anos sem direitos políticos. Sobreviveu à ditadura. Diferente foi o caso de muitos de seus companheiros de resistência que sucumbiram na luta, como Eduardo Collen Leite, o Bacuri, executado em dezembro de 1970, no sítio do delegado Sérgio Paranhos Fleury; Iara Iavelberg, morta, segundo depoimentos, após ser torturada no Dops da Bahia, em 1971; e Carlos Lamarca, executado em 1971 no interior da Bahia.
Tortura, assassinato, desaparecimento, sequestro e exílio são palavras aterrorizantes. Para escrever a história deste País é preciso fazer uso delas. Relembrar esses episódios é difícil e angustiante, mas não é possível deixar esse passado definitivamente para trás sem torná-lo uma ameaça presente. Cabe à memória recordar a barbárie para que ela não tenha lugar. Suprimir a memória para não perder votos não é boa coisa. Falsificá-la para ganhá-los também não.
*Alvaro Bianchi é diretor do Arquivo Edgard Leuenroth e professor do Departamento de Ciência Política da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp)
FONTE: Viomundo
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