Reproduzo artigo de Osvaldo Bertolino, publicado no sítio da Fundação Maurício Grabois:
No mundo da mídia brasileira — ao contrário do jogo do bicho em que vale mesmo o que está escrito —, não vale nem o que está escrito e nem o que é falado. Nada mais arriscado do que tomar ao pé da letra o que se ouve e se lê nas principais manchetes.
Os jornais de hoje, por exemplo, carregam tanto nas manchetes catastróficas que fica difícil selecionar alguma para provar a desfaçatez do jogo política da direita nessa reta de chegada da campanha eleitoral. Escolhi, por ser emblemática, a manchete que anuncia que “personalidades” lançaram um “Manifesto em defesa da democracia”.
Entre os que já assinaram o documento, informa o jornal O Estado de S. Paulo, estão Hélio Bicudo, Carlos Velloso, José Arthur Gianotti, Ferreira Gullar e Carlos Vereza. Talvez com exceção de Bicudo, todos são figurinhas carimbadas das hostes tucanas, gente de direita que, mais ou menos raivosa, tem dedicado seus dias à pregação golpista. O jornal carrega na tinta ao anunciar que o “Manifesto” sai “num momento em que o governo do presidente Lula se dedica a investidas quase diárias contra a liberdade de informação e de expressão e critica a imprensa”.
Alguns democratas
Ainda segundo o vetusto jornal das oligarquias paulistanas, estão no grupo que protagoniza a farsa “personalidades de diferentes setores — entre eles juristas, intelectuais e artistas”. A meta, diz a matéria, é “brecar a marcha para o autoritarismo”. O ato público ocorreu nesta quarta-feira (22), ao meio dia, na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, em São Paulo. O jornal também informa outros nomes como signatários — os dos tucanos Marco Antonio Villa, Bóris Fausto, Celso Lafer e Leôncio Martins Rodrigues, além dos de José Álvaro Moisés, Lourdes Sola, Mauro Mendonça, Rosamaria Murtinho e do respeitadíssimo democrata d. Paulo Evaristo Arns.
A presença de alguns democratas entre o grupo não invalida a sua essência rancorosa, reacionária, golpista. A pregação fascista aparece já no início, quando o “Manifesto” diz: “Hoje, no Brasil, os inconformados com a democracia representativa se organizam para solapar o regime democrático.” Mais adiante, considera “inconcebível” que “uma das mais importantes democracias do mundo seja assombrada por uma forma de autoritarismo hipócrita”. O terrorismo eleitoral é indisfarçável.
Apelo dramático
Marco Antônio Villa garante na matéria que existe “uma ameaça concreta” à democracia. “É uma preocupação geral com o que está ocorrendo no país, e hoje (ontem) o Lula mais uma vez reforçou”, disse o tucano. Para o golpista, caso um eventual governo Dilma consiga eleger três quintos do Congresso “eles conseguirão fazer mudanças constitucionais a seu bel-prazer”. “E se você tiver uma parte da legislatura formada por ‘Tiriricas’, corremos sério risco”, pregou, verbalizando o asqueroso preconceito social da elite brasileira. Villa faz um apelo dramático e patético a favor do seu candidato, o direitista José Serra. “É preciso de um grito de alerta”, pregou. E foi corroborado por dois outros tucanos, Leôncio Martins Rodrigues e Arthur Gianotti.
O “Manifesto” está eivado de golpismo. “É intolerável assistir ao uso de órgãos do Estado como extensão de um partido político, máquina de violação de sigilos e de agressão a direitos individuais”, diz o documento farsesco. “É inaceitável que a militância partidária tenha convertido os órgãos da administração direta, empresas estatais e fundos de pensão em centros de produção de dossiês contra adversários políticos”, falsifica novamente o “Manifesto”.
O texto tucano é um emaranhado de falsidades e proselitismos. E de uma mediocridade de dar dó. Por meio de um festival de é isso, é aquilo, o documento tece um retrato desfigurado da realidade política do país e não esconde a verdadeira intenção dos seus idealizadores — abastecer a mídia com pronunciamentos que serão transformados em factóides e servirão de manchetes que serão exploradas na propaganda eleitoral de José Serra. “Brasileiros erguem sua voz em defesa da Constituição, das instituições e da legalidade. Não precisamos de soberanos com pretensões paternas, mas de democratas convictos”, brada o patético documento.
Comentários dos leitores
Como era de esperar, a notícia pegou fogo nos “comentários” do site do jornal. E muitos comentários — além da média, uma vez que esta publicação é amplamente dominada pela direita — surpreenderam pela sagacidade. Reproduzo dois, que são emblemáticos: “Qual será o próximo passo? Marcha da família com Deus pela liberdade, com a TFP a frente? Já assisti esse filme. Muitos, mas muitos mesmos, morrem no fim”, disse Ricardo Malta
Pedro Pinto de Arruda comentou: “É o movimento Cansei, em sua vertente pseudo-intelectual! Juntando essa trupe toda, nao dá meio grama de credibilidade! Ferreira Gular, o farsante maranhense que envergonha seus admiradores do grande poeta que foi um dia… Marco Antonio Villa, o intelectual da tucanalha… Gianotti, o filósofo da amoralidade de FHC… tutti buona gente… Nao valem o que o gato enterra…”
Conceito de mídia
Na maioria das nações com um grau razoável de civilização, faz parte das regras do jogo acreditar no que a mídia diz. Não no Brasil, e menos ainda no Brasil de hoje. Antes de prosseguir, é preciso definir o conceito de mídia. Parece razoável pensá-lo, resumidamente, como o espectro de informações que circulam nos veículos de comunicação majoritários de um país e a sua reprodução como senso comum.
Nada a ver com uma das manchetes de hoje do jornal O Globo, que anunciou: Centrais e movimentos sociais organizam ato contra imprensa. O ato é contra a mídia, não contra a imprensa — uma conquista civilizatória. O que a mídia pratica hoje em dia no Brasil está muito distante dos nobres ideais da imprensa. Analisar a postura da mídia brasileira em relação ao governo Lula tendo como pano de fundo esta definição é ter a certeza de que algo muito grave está ocorrendo.
Ódio de classe
O exame clínico do passado recente desta relação revela que se existe algo que o Brasil tem de sobra — como petróleo, minério de ferro e água — são pregações golpistas. Vale tudo para tentar transformar um governo com identificação com o povo, e que aparece bem na foto, numa administração de segunda classe. Talvez a mídia não tenha tempo ou capacidade para cometer todos os desatinos que pretende até as eleições, mas com certeza está empenhada em aproveitar ao máximo todas as oportunidades que aparecerem pela frente para vituperar contra o governo Lula.
Há um indisfarçável ódio de classe — tecla na qual tenho batido desde a primeira campanha de Lula à Presidência da República, em 1989. Hoje, depois de oito anos de práticas políticas voltadas para os interesses do povo, vivemos uma realidade tão complexa que a construção de uma simples rede de esgoto em alguma periferia ou de uma estrada asfaltada que rasga os sertões rompe ao mesmo tempo o véu das relações sociais obsoletas que temos no Brasil.
E olha que são medidas meia-sola, que nem de longe ameaçam o satus quo. O problema é que um eventual governo Dilma Rousseff se propõe a ir além e, com essas ações sociais, granjear imenso apoio popular para temas como política externa independente, desenvolvimento econômico, planejamento, papel do Estado na economia e integração progressista da América Latina — assuntos que, pouco a pouco, ganham espaços no panorama político e no debate ideológico.
Vazio de propostas
Com estes dados, fica fácil entender por que o vazio de propostas da direita é preenchido com adjetivos fortes e factóides esdrúxulos no julgamento paralelo dos justiceiros da mídia. A verdade é que um mínimo de seriedade ao analisar o papel da mídia mostra que ele é ágil em lançar “suspeitas” sobre quem quer que seja do campo governista e cágada — a sílaba tônica, outra vez, fica a seu critério — no cumprimento do papel que cabe à imprensa.
O problema é que a tendência humana é a de acreditar muito mais no que se vê do que no que se lê — ou se ouve. Daí a repetição e a renovação da roupagem das “denúncias” numa velocidade estonteante. Para encobrir a realidade, quanto mais manchetes funéreas, melhor. A idéia da mídia é fazer com que, como no jogo do bicho, se está escrito deve valer — e assim vai se dando como verdade qualquer coisa que apareça contra o governo. Pouco importa se o dito tem ou não tem nexo. Desde que indique a existência de uma calamidade extrema, a coisa em questão passa a ser repetida, vai se alimentando da própria repetição e acaba por se transformar em uma embolada sobre a qual ninguém entende mais nada. Fica aquela fumaça no ar, como a que sobe depois de um tiroteio.
O caso da corrupção é um dos clássicos do gênero. Em matéria de bobagem em estado puro, é o que há. As denúncias que vieram à tona nos últimos tempos deram ensejo a debates acalorados, como é legítimo e saudável que aconteça. Mas esse calor não nos exime da tarefa de analisá-las com certa frieza, numa perspectiva temporal mais ampla, como um capítulo da história que estamos tentando construir no Brasil. São denúncias que nunca dão em nada. Elas não prosperam por falta de qualidade.
Episódios farsescos
Não deveria ser assim. Se há denúncias, é preciso investigá-las com rigor e lupa de precisão. Isso é bem diferente deste encontro do estardalhaço com a inutilidade. O fato é que os escândalos que se vão sucedendo parecem produzir efeitos cada vez menores no que se refere à mobilização cívica e ao aperfeiçoamento institucional. Quais seriam as causas desse declínio? A questão é complexa — e mais ainda quando se tem em vista o que está por trás desta inusitada sucessão de acusações.
Nenhum dos episódios farsescos contra o governo Lula teve desfecho explosivo, como pretendia a mídia. Ao contrário: a impressão que se tem é que o teor radioativo da série se reduz à medida que as denúncias se multiplicam. Minha hipótese é que esse festival de besteira que assola o país perde cada vez mais credibilidade em decorrência da falta de seriedade, de responsabilidade e de compromisso público da direita. Isso está em seu DNA de classe.
Um exemplo evidente disso é o grau de repercussão das denúncias sobre os cartões corporativos federais e paulistas. De nariz torto, a mídia foi obrigada a registrar práticas semelhantes e justificativas idênticas — sem se dar ao trabalho de verificar se havia ou não fundamento nas denúncias sobre os dois casos.
Maior vitória de Lula
Para que uma denúncia se transforme em indignação social viva e pública, ela precisa de um ingrediente básico: credibilidade. Quando a denúncia não se sustenta, um ou outro cidadão pode até ter os seus motivos de indignação, mas abstém-se de comunicá-los a outras pessoas — e, mais ainda, de participar em demonstrações coletivas. Na verdade, as causas principais do esmaecimento das reações sociais diante de tantas denúncias são a própria consolidação do governo Lula e a sensação de melhora que o país passou a desfrutar.
Ultrapassado o momento mais agudo da transição do regime abertamente neoliberal ao de maior atenção ao papel do Estado, observou-se uma redução da carga dramática da política em todos os seus aspectos — inclusive no tocante a denúncias de irregularidades. O governo Lula optou pelo exercício do poder político cimentado por ingredientes como transigência, negociação, composição de interesses e o estímulo à cooperação.
A sua principal vitória não foi propriamente a reeleição em 2006 — obviamente contra a vontade da mídia e de outros menos votados. A maior vitória do governo Lula é a capacidade de resistir ao desgaste e de continuar persuadindo a maioria da sociedade de que ela precisa desse poder que vem se formando no país.
Comitê central
Estamos entrando numa fase em que a direita tenta reerguer a sua agenda e cabe aos setores populares impedir que isso aconteça. Em outras palavras: não é papel do presidente da República dar resposta agudas aos ataques da mídia. O movimento social precisa entrar em campo.
Movidos por objetivos politiqueiros ou por interesses próprios, o fato é que os protagonistas do regime neoliberal — a mídia no fundo é o comitê central dessa gente — passaram a investir muito nessas sucessivas cruzadas de purificação moral, tentando dizer que elas, por si só, podem solucionar os problemas do país.
Essa é uma visão abertamente golpista. O recurso demasiado freqüente a tais cruzadas tem o perverso efeito de desvalorizar a própria cruzada como instrumento cívico e político. Se tudo é escândalo, nada mais é escândalo. Aí aparecem os redentores, como apareceram em 1964.
FONTE: Blog do Miro
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