Os Estados Unidos amargam os efeitos da mais longa recessão de sua história desde a Segunda Guerra, segundo o Departamento Nacional de Pesquisa Econômica (NBER, na sigla em inglês). Iniciada em dezembro de 2007 e oficialmente encerrada em junho de 2009, o declínio da economia durou 18 meses e deixa feridas profundas na terra do Tio Sam. A recuperação é frágil e incerta, o que renova os temores de um duplo mergulho na depressão.
Por Umberto Martins
É visível o acirramento das contradições sociais e da concentração da renda. Cresce a miséria no seio da classe trabalhadora. Estatísticas oficiais, divulgadas recentemente pelo governo, revelam que a quantidade de pobres na maior economia capitalista do mundo cresceu pelo terceiro ano seguido, passando de 39,8 milhões em 2008 para 43,6 milhões em 2009. O número é o maior em 51 anos e traduz uma taxa de pobreza de 14,3% no ano passado (ante 13,2% em 2008).Quem paga o pato
Os indicadores mostram que os impactos sociais mais dramáticos da crise recaem sobre as famílias mais pobres, que pertencem à classe trabalhadora. A realidade social desta gente contrasta com a das camadas mais ricas da população, que continua enriquecendo apesar da recessão ou mesmo graças a ela.
Os salários nos Estados Unidos são mais altos que nos países latino-americanos. É isto que atrai a mão-de-obra imigrante proveniente do Brasil, México e outros países latino-americanos, iludidos com o American way of life (modo de vida americano).
Mas a renda do trabalho está estagnada nos Estados Unidos desde os anos 1970 e o emprego industrial, o que melhor remunera, percorre uma longa trajetória de declínio. Parece que os frutos da expansão capitalista verificada desde então foram apropriados exclusivamente pelos mais ricos, com destaque para a oligarquia financeira.
O excesso de consumo evidenciado na superprodução de imóveis, que acionou o gatilho da recessão, não decorreu do aumento da renda, mas da fartura de crédito fomentada pelos derivativos e pela ganância insaciável dos banqueiros. Com excesso de liquidez, emprestaram até para quem não tinha renda, patrimônio ou emprego.
Assim inflaram a bolha imobiliária. Quando chegou a hora da verdade, no curso de 2006, a bolha estourou, os preços dos imóveis despencaram, sobrevindo a inadimplência em massa, a recessão (no final de 2007) e os despejos, que vitimam milhões de trabalhadores e trabalhadoras.
Desemprego em massa
A situação da classe trabalhadora piorou (e muito) com a crise. Mais de 8 milhões foram afastados de seus postos de trabalho e passaram a engrossar o exército de desempregados, que segundo alguns economistas já conta com um efetivo superior a 30 milhões, incluindo os subempregados.
Observa-se também um aumento do grau de exploração dos que continuam empregados,
submetidos a um ritmo mais intenso de trabalho, maior flexibilização e precarização dos contratos.
As empresas evitam contratar por tempo indeterminado e implementam planos de reestruturação poupadores de mão-de-obra.
Os governos Bush e Obama, em associação com o Federal Reserve (Fed, banco central dos EUA), despejaram trilhões de dólares na economia a pretexto de conter a recessão e criar condições para a recuperação e o crescimento da economia.
Recuperação dos lucros
O governo e alguns analistas chegaram a alardear o fim da crise e início da recuperação diante da notícia de que, resgatados pelo dinheiro público, os bancos e muitas empresas saíram do vermelho e começaram a exibir gordos lucros, reanimando as bolsas de valores.
Mas a recuperação dos lucros não significou o fim da recessão para a grande maioria do povo, constituída de assalariados e desprovida de patrimônio. O desemprego continuou avançando, indiferente aos trilhões de dólares injetados pelo Estado no sistema financeiro e à retórica do governo Obama.
A verdade é que o Estado não agiu para proteger os trabalhadores. A forte intervenção do governo na economia, que alguns analistas interpretaram precipitadamente como um adeus ao neoliberalismo, serviu a outro interesse: salvar os banqueiros, responsáveis pela crise, e grandes empresas como a GM e a Ford.
Ganhando para demitir
Provisoriamente estatizada, a montadora GM recebeu bilhões de dólares para levar à frente um projeto de reestruturação que prevê a demissão de dezenas de milhares de operários nos Estados Unidos.
Outra “grande de Detroit” (outrora), depois de amargar anos de prejuízos a Ford espera anunciar um lucro de 5 bilhões de dólares neste ano depois de reduzir sua força de trabalho em quase 50% na América do Norte ao longo dos últimos cinco anos.
São fartos os exemplos de grandes empresas que estão ampliando os lucros com as demissões, intensificando a exploração da força de trabalho e forçando o aumento da produtividade do trabalho, conforme relata Fred Gosdstein num esclarecedor artigo sobre o tema.
As empresas também lucram com a chamada deslocalização, fechando fábricas no país e transferindo a produção para outros países onde a mão-de-obra é mais barata. O resultado disto é mais desemprego e desindustrialização, que no caso dos EUA não reflete apenas uma tendência objetiva do desenvolvimento da economia. É antes um sinal do parasitismo.
Vê-se, assim, que o desemprego é um flagelo para as famílias da classe trabalhadora, mas é também, ao mesmo tempo, uma fonte de lucros para os grandes grupos capitalistas, cujos interesses são escandalosamente dominantes no seio do Estado burguês. Não é de estranhar que o empenho para solucionar o problema deixe a desejar.
O emprego e a recuperação
Embora não impeça que alguns velhacos continuem lucrando e até ampliando seus rendimentos líquidos na crise, o desemprego é um péssimo negócio para a economia como um todo. A renda do trabalho é o principal fundamento do consumo em escala social.
Quando o trabalhador perde o emprego, e a renda decorrente, é constrangido a reduzir drasticamente ou mesmo interromper o consumir e também o pagamento de dívidas. Esta circunstância acirra a contradição entre produção e consumo que caracteriza o capitalismo, onde, ao contrário do que imagina o senso comum, o objetivo da produção não é o consumo, mas o lucro, sendo esta a razão última das crises de superprodução.
A queda do consumo induz os capitalistas a reduzir o volume de produção para adequá-lo à demanda deprimida, o que constitui um óbvio óbice à recuperação e ao crescimento da economia. Em virtude do parasitismo econômico, a poupança responde por 70% do PIB dos EUA.
Ao reduzir o consumo, o desemprego deixa de ser efeito para se transformar em causa da crise. Não é sem razão que muitos economistas apontem a escassez de emprego como o grande obstáculo à recuperação.
Distribuição da renda
A concentração da riqueza agrava o problema. Em contrapartida à estagnação da renda do trabalho, no topo da pirâmide social a faixa de 1% mais rico da população, que possuía 9% da renda nacional nos anos 1970, passou a se apropriar de 23,5% da renda total em 2007, ou seja, triplicou sua participação. A distribuição da renda nos EUA retrocedeu ao perfil verificado no início da Grande Depressão, em 1929.
Os super ricos têm muito dinheiro, mas uma capacidade de consumo limitada. Gastam um percentual menor de sua renda em comparação ao que consome o cidadão normal. Ou seja, os 23,5% da renda nacional apropriados por 1% de ricaços não são totalmente carreados para o consumo. Isto certamente contribuiu para a dramática queda do consumo nos EUA, que ultimamente vinha sendo sustentado pelo crescente endividamento.
O baixo consumo é a principal restrição à plena recuperação da economia. Isto transparece nos dados do mercado imobiliário, que registrou uma queda de 27,2% na venda de imóveis em julho deste ano, o que reflete a inadimplência dos desempregados. Os bancos que financiaram os trabalhadores na compra das casas reagem desencadeando um processo de despejo em massa. A construção civil responde por 15% do PIB americano.
A aparente contradição entre o recuo do consumo e o avanço dos lucros “é uma das razões por que em Wall Street há muito mais alegria que nas casas dos trabalhadores, onde o pessimismo é profundo e o desemprego dá poucos sinais de que vai diminuir”, comenta o jornal Times.
Sintomas do fascismo
Imigrantes e negros são os segmentos da classe trabalhadora mais afetados pela crise. O desemprego entre os negros chegou a 15,5% em maio, contra taxas nacionais de 9,7%. A situação já é quase tão desesperada quanto no ponto mais baixo da Grande Depressão dos anos 1930: mais de um, de cada seis negros, está desocupado; entre adolescentes negros, a maioria dos quais está fora da escola e busca emprego de tempo integral, a taxa de desemprego alcança 38%.
O Censo dos EUA revela que a proporção de brancos que viviam na pobreza era de 8,6% em 2008, mas a taxa quase triplica entre os cidadãos afro-americanos e latinos, com 24,7 e 23,2%, respectivamente. Em 2008, 30,7% dos latinos, 19,1% dos afro-americanos e 14,5% dos brancos careciam de qualquer seguro médico.
A exemplo do que ocorre na Europa, a extrema-direita norte-americana, que avança no seio do Partido Republicano, procura transformar os imigrantes em bodes expiatórios da crise. A recessão exacerba o cinismo da oligarquia financeira e estimula a intolerância e o racismo, criando um caldo de cultura próprio do fascismo.
Fragmentar a classe trabalhadora com a clivagem entre imigrantes, negros e brancos “nativos” e impedir o desenvolvimento de uma consciência e uma identidade de classe entre as diferentes categorias e segmentos é uma operação elementar do grande capital para manter o domínio e o modelo econômico predatório e reacionário.
Frustração
A recessão teve um papel decisivo na eleição de Obama. Os trabalhadores enxergaram no líder negro a esperança de medidas concretas e eficazes contra o desemprego e o retrocesso social. Votaram em massa no candidato democrata. Mas o atual presidente, que não poupou recursos para salvar os banqueiros, frustrou as expectativas do povo, está com a popularidade em baixa e tende a colher um resultado melancólico nas eleições parlamentares de novembro.
O que ainda está em curso nos Estados Unidos é uma crise típica do capitalismo, que ocorre nos marcos do desenvolvimento desigual das nações reforçando o declínio histórico da hegemonia americana e os desequilíbrios insustentáveis da ordem imperialista.
Infelizmente, não há sinais de solução à vista. Sufocada por um sindicalismo corrompido e a divisão racial e étnica em seu próprio meio (entre negros, brancos e imigrantes), a classe trabalhadora não está em condições de apresentar uma alternativa progressista ao capitalismo neoliberal dos EUA. O processo eleitoral é monopolizado por dois partidos que têm o rabo preso com as classes dominantes e parece infenso a mudanças. O pleito de novembro não vai alterar esta realidade, a menos que seja para pior.
FONTE: Portal Vermelho
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