Anúncio Superior

domingo, 19 de setembro de 2010

Os fatos da razão e a razão dos fatos

Fernando Borges/Terra
A ex-ministra Erenice foi o braço direito de Dilma Rousseff na Casa Civil
A ex-ministra Erenice foi o braço direito de Dilma Rousseff na Casa Civil

Francisco Viana
De São Paulo (SP)

Numa situação de crise, qualquer que seja, três questões principais se impõem: o que podemos conhecer? O que devemos fazer? O que nos é permitido esperar quanto ao desdobramento dos cenários? No caso da repercussão na mídia das denúncias da revista Veja envolvendo a agora ex-ministra chefe da Casa Civil, Erenice Guerra, e de seu filho, Israel, em suposto tráfico de influência, as respostas às questões em foco podem iluminar as sombras que pareciam se adensam no momento em que as eleições presidenciais chegam à reta final.

Contudo, antes de responde-las, é oportuno fazer um duplo registro: o governo agiu com presteza e determinação, evitando que a crise se transformasse numa crise de alcance eleitoral, neutralizando as tentativas da oposição de politizá-la. A ex-ministra, por sua vez, não lidou corretamente, em termos técnicos, com o problema. Em parte, porque recorreu mais à retórica, nas suas notas oficiais, do que a substancialidade dos fatos; em parte, porque não enfrentou a imprensa no olho no olho. Notas são para apoiar a comunicação objetiva, com o envolvido no processo, ocupando a linha de frente, sobretudo em casos de grande repercussão. Dai a queda da ex-ministra, ser previsível desde o primeiro momento. Faltou antecipação, faltou visão do que é uma crise de comunicação naquelas circunstâncias. O governo e a candidata Dilma Rousseff, vale repetir, tiveram atitudes corretas do ponto de vista da gestão do problema. E, melhor, agiram.

Agora vamos às questões comuns às crises com foco no case Erenice. O que podemos saber? Primeiro, é preciso desvendar as razões das denúncias chegarem a público justamente agora, quando as pesquisas mostram o candidato José Serra em queda livre e a candidata Dilma Rousseff se encontra em franca ascensão. Como a ex-ministra Erenice foi o braço direito de Dilma Rousseff na Casa Civil, é óbvio que o alvo não era Erenice, mas a candidata à presidência. E o noticiário está ai para mostrar. Com essa simples constatação, pode-se questionar porque, de repente, a grande imprensa de São Paulo e do Rio de Janeiro foi tomada de autêntico furor ético, transmitindo a sensação de que o atual governo é a encarnação do mal na gestão dos recursos públicos. Examinemos mais de perto o problema.

Tentou-se associar a candidatura Dilma à quebra de sigilo fiscal, à instabilidade institucional e buscou-se transformar seu passado de defensora da liberdade nos idos do regime militar, que a engrandece, em atividade terrorista, o que nunca existiu. Não deu certo. As pesquisas divulgadas nos últimos dias demonstram que o eleitor não caiu na armadilha que tentou induzí-lo a confundir fatos com versões dos fatos. Dilma disparou nas pesquisas. A ex-ministra Erenice surge então como alvo da vez e sua vida é escrutinada de alto à baixa com o único propósito de desqualificá-la e , com isso, atingir a candidatura Dilma. Também, não deu certo.

O que devemos fazer? Examinar os fatos e apenas os fatos, sem dissociá-los do contexto político-eleitoral. E, mais do que isso, entender que uma coisa é o desvio de conduta de uma autoridade ou de um familiar desta - que precisa ser investigado pelas autoridades , no caso da ex- Ministra -, outra é um projeto político. Há, é evidente, dois projetos antagônicos em jogo nessa eleição: de um lado, o projeto da candidatura Dilma, que inclui a participação popular e a soberania popular, orientando-se para a construção de uma sociedade moderna, plural, de outro, um projeto elitista, cujo rosto volta-se para o passado desde o começo. Examinado os fatos, pode-se facilmente concluir que as denúncias envolvem uma troca simbólica.

No passado, os conservadores esgrimiam a bandeira do anticomunismo, trincheira de onde iludiram parte da sociedade por meio século; agora, a bandeira é o combate à corrupção. A UDN recorreu à essa retórica por décadas, mas não passava de cortina de fumaça para chegar ao poder. Separar o que é fato, o que é manipulação política, em nada isenta a apuração do que realmente ocorreu ou vem acorrendo. O que seria um equívoco é confundir a razão dos fatos com os fatos da razão. A razão dos fatos é o jogo político, os fatos da razão é a apuração objetiva dos fatos reais, quer dizer, concretos.

O que nos é permitido esperar quanto ao desdobramento dos cenários? Os conservadores que se alinham em torno da candidatura José Serra, trabalham desesperadamente para chegar ao segundo turno. A mídia, em grande parte, (refiro-me especificamente à chamada grande imprensa) busca ocupar um lugar central como formadora da opinião do eleitor. Quer ser uma espécie de Farol de Alexandria dos tempos modernos. Age com tenacidade. Age com determinação. Criar narrativas e, com elas, transmite a mensagem de que os bons vão defender a sociedade contra os maus. A julgar pelas pesquisas, o cidadão brasileiro tornou-se refratário a esse tipo de jogo. A mídia tradicional, vale lembrar, não tem mais o monopólio da informação. As mídias sociais são hoje portadores de uma visão crítica e a vem intervindo com substância no debate político.

O cenário mais provável é que o eleitor não se iluda e se movimente na direção do real, não do rosto enganoso das aparências. A sociedade mudou. O eleitor torna-se a cada dia mais informado, mais consciente do que é a ética vivenciada com a verdade e a ética normativa do que se deve fazer, mas nunca se faz. Claro, a situação da ministra não deve ser subestimada e o governo deve agir com rapidez e transparência para prestar contas à nação. Essa é uma prática indispensável aos ritos democráticos, a todo instante. Não um recurso de circunstância. Pois o que está sempre em jogo é a legitimidade pública para o exercício do poder.

Mas há ainda uma quarta questão recorrente nas situações de crise. Quais as lições a serem assimiladas? A primeira, e mais essencial, é que o governante, o político, precisa ter conduta inatacável, pois o exercício da ética não é normativo, mas um confronto com o real. Nenhum ocupante do alto escalão de governo, seja qual for o governo, pode ter um familiar lobista. E se isto acontecer, o fato deve ser tornando público e deixado claro que a autoridade não tem qualquer vínculo com o familiar nos seus negócios. A segunda é que se tornou imperativo distinguir o que é uma ética verdadeiramente democrática e a ética retórica que joga de lado os projetos de efetiva dimensão social. O eleitor deve tomar cuidado para não se deixar iludir pela ética retórica.

Por fim, fica evidente mais uma vez o fato de que o conservadorismo político no Brasil é como uma cera rígida, extremamente apegada às sobras do passado e, por isso, indelevelmente resistente às luzes da modernização social. Sempre estão a vislumbrar uma luz ao longe para superar as complexidades da vida, mas quando podem iluminar a verdade que apregoam, alegam que as complexidades são muitas. E a luz misteriosamente se volatiliza. Por isso, não vêm a dimensão dos fatos, apenas o éter dos factóides, que o brasileiro aprendeu a rejeitar.
Leitura recomendada

EAGLETON, Terry. O problema dos desconhecidos: um estudo da ética. Tradução Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010.



Francisco Viana é jornalista, consultor de empresas e autor do livro Hermes, a divina arte da comunicação. É diretor da Consultoria Hermes Comunicação estratégica (e-mail: viana@hermescomunicacao.com.br)
 
FONTE: TERRA MAGAZINE

Nenhum comentário:

Postar um comentário